Está rolando no facebook, principalmente nos grupos de mães um novo “desafio”.
Desafios na língua do facebook são correntes para espalhar uma campanha, uma ação, um viral, ou uma opinião.
O desafio dessa semana é o “Desafio contra o aborto” – Muitas grávidas postando fotos suas, lindas, com um barrigão e contando o quão foi maravilhosa e transformadora sua experiência com a maternidade. Eu não poderia concordar mais. Sou mãe de uma garotinha de dois anos que me espanta e emociona todos os dias. Depois que fui mãe meu olhar para o mundo ficou mais gentil e generoso, e é um privilégio poder amar e ser amada por essa criaturinha tão especial.
Quando me perguntavam por que eu decidi ficar grávida e ter um filho, eu sempre respondia a única coisa que parecia correta para mim: eu quero. Eu desejo isso. Nunca entendi muito bem aquelas pessoas que diziam ter filhos para que cuidassem deles quando velhos, ou porque é isso que as pessoas fazem, casam e têm filhos. Para mim todas as respostas são um equívoco. O único motivo para se querer botar um filho no mundo é: querer.
Da mesma forma que eu defendo esse desejo soberano de ser mãe, eu também defendo o desejo soberano, legítimo e completamente inquestionável de não querer ser a mãe de alguém. Eu sinceramente não faço nenhum juízo de valor dos motivos: priorizar a carreira, não se sentir com vontade de cuidar de uma criança, não ter dinheiro, parceiro fixo, sinceramente não me importa. Basta não querer, e não querer deveria ser o melhor e mais respeitado motivo de todos.
Então eu realmente não consigo compreender que uma mulher que passou por essa experiência transformadora da maternidade, que te joga no olho do furacão das subjetividades e te obriga a olhar a vida na perspectiva de um outro (que não fala, não se move, e se comunica apenas através do querer, como um recém nascido) acredite que todas as mulheres devem ser obrigadas a passar pela experiência da maternidade. Ninguém deveria ser obrigada, se assim não é o seu desejo. Ninguém deveria ser obrigada a passar por uma gravidez, um parto, um puerpério e ser responsável por outro ser durante toda a vida se essa não for sua vontade.
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Recentemente eu lancei um documentário chamado Clandestinas, sobre mulheres que fizeram um aborto ilegal no Brasil. Esse documentário foi muito bem recebido em alguns países da Europa, e muitas pessoas legais me procuraram para saber mais detalhes da realidade brasileira. A pessoa mais curiosa era um juíz francês, que ficou muito impressionado que em um País laico e democrático como o Brasil as mulheres não pudessem interromper um processo gestacional se assim fosse sua vontade. Que para ele, ter direito sobre o próprio corpo era um dos pilares da civilidade. Expliquei que o Brasil apesar de laico na teoria era um país de influência católica e cristã muito forte, e que existiam bancadas religiosas no parlamento com muito poder e influência. Ele ficou muito impressionado, e comparou a situação das mulheres brasileiras à Sharia, que é quando os países islâmicos abandonam o sistema político e jurídico para usar o Alcorão como único livro das leis. Como se aqui no Brasil se extinguissem o código civil, penal, a constituição e usássemos como parâmetro apenas a Bíblia. No início achei um exagero, mas na prática somos legislados por aqui mais por preceitos morais e religiosos do que pela lei de fato – assim como mulheres islâmicas que vivem sob a Sharia não podem sair na rua sem um acompanhante masculino, e nem devem frequentar escolas ou qualquer instituição de ensino formal, no Brasil devemos nos submeter à uma legislação atrasada que coloca nossas vidas em risco.
Eu já bati muito nessa tecla, mas uma gravidez não é um bebê – não há morte, assassinato ou dor em um aborto seguro realizado nas primeiras semanas. Não há. Não sou eu quem digo, é a ciência. Uma gravidez indesejada não deveria ser uma condenação para mulher. Vivemos em um mundo tão contraditório, que se diz que a gravidez e o bebê são as melhores coisas do mundo, mas usamos os bebês e a gravidez para punirmos as mulheres que não desejam ser mães ou não desejam ter mais filhos.
Quando uma mulher decide abortar não existe legislação no mundo que vá impedir que ela o faça. Brasileiras com grana irão pagar clínicas caras, viajar para outros países, importar medicamentos. Mulheres pobres e adolescentes em pânico se jogarão em frente de carros, usarão objetos caseiros pontiagudos, se envenenarão. Muitas delas irão morrer sem atendimento médico adequado. Muitas delas irão ter sequelas pela vida inteira, pelo simples fato de não desejarem gerar um filho. É cruel e doentio que isso aconteça nas barbas do Estado. O presidente da Câmara dos deputados Eduardo Cunha disse que só se legisla sobre aborto no Brasil por cima do cadáver dele. Mas a ilegalidade do aborto já passa por cima do cadáver de milhares de brasileiras todos os anos.
Você, mãe que postou orgulhosa a sua barriga de grávida para impedir que o aborto fosse legalizado, eu te desafio. Eu te desafio a transpor a generosidade e a empatia que você tem com outras mães e com bebês para as mulheres que não desejam ser mães. Eu te desafio a repensar a sua postura sobre o aborto – e por mais que você nunca passe por esse dilema moral na sua vida, milhares de mulheres estão passando por ele agora. Muitas amigas suas passaram. Muitas mulheres da sua família passaram. E elas estão sofrendo em silêncio pois sabem que esse é um assunto proibido. Eu te desafio a pensar fora do que “eu” faria e do que “eu” acho certo para se colocar no lugar dessas outras mulheres, que não vêem alternativa e que precisam de apoio e acolhimento e não da condenação e julgamento de outras mulheres. Eu te desafio a pensar outra vez sobre aborto.