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Bagunça

Liz aprendeu a fazer bagunça. Bagunça para ela pode ser muitas coisas. Animada, gritando “bagunça mamãe!” jogando as almofadas para o alto e me chamando para brincadeira. “Liz fez bagunça”, e ela vem entre constrangida e divertida me dizer que derramou suco no sofá.

O que a Liz não sabe ainda é que adultos fazem muita bagunça. Que é uma verdadeira bagunça amar alguém, se apaixonar, viver tentando não se machucar, e finalmente encontrar a maior bagunça de todas que é terminar um relacionamento.

Para arrumar essa bagunça a gente precisa ter paciência, critério e afeto.

É bem difícil ter paciência, critério e afeto quando duas pessoas decidem que não é mais possível viver junto e que uma das partes declarou “não amar mais”.

Enquanto crianças misturam blocos coloridos, pernas de boneca e giz de cera dentro de um tambor de ponta cabeça, nós adultos misturamos respeito com raiva com dinheiro com responsabilidade com mágoa com dor. Boa coisa não dá.

Estamos eu e o pai dela tentando cuidar do fio de delicadeza que nos resta, ou deveria nos restar mas: existe a bagunça. Um amontoado. Uma zona federal.

Na nossa cultura sabemos exatamente como devemos nos apaixonar. É claro, límpido, não resta nenhuma dúvida posto que é onipresente, transbordante, um esmagamento. Mas na nossa cultura ninguém nos ensina a nos desapaixonar de leve, fluindo, bem mansamente deixando a mar baixar até que da areia só vejamos aquela impressionante e calma linha azul. Vamos aprendendo um dia, depois outro dia, e depois outro dia que o fim não precisa ser brusco como começo.

Estou aqui separando brinquedos da casa nova do papai com brinquedos que vão ficar na casa velha da mamãe. Calcinhas, bichos de pelúcia, trens, xilofones, minúsculas meias, sapatos, sereias, livros. Para que a bagunça continue confinada no campo da matéria, daquilo que se pega, daquilo que se vê. Para as outras bagunças existe o tempo:

Existe o tempo onde eu queria ter uma luneta para ver o final.

Existe o tempo onde eu não posso pensar no final.

Existe o tempo onde não existe um final.

Existe o tempo como o tempo de hoje. De observar a maré.


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