Quantcast
Viewing all articles
Browse latest Browse all 14

11 Notas sobre o dia 15 de Março.

Nota nº 1

Como de hábito acordei bem cedo na manhã de domingo e fui correr na orla de Copacabana. Uso um aplicativo que mede a distância e a velocidade do treino e fiquei bem surpresa ao perceber que pelo menos a cada cem metros da Avenida Atlântica tinha um boliho de policiais. Olhei ao redor – não só estavam na pista fechada, mais próxima da praia, mas também nos postos, e nas esquinas de cada rua. Um carro de som desligado estava no posto cinco, e alguns poucos manifestantes de verde e amarelo estavam dispersos.

Nota nº 2

Corri até o Leme e comecei a ver manifestantes chegando. Algumas famílias, grupinhos de homens e mulheres de cerca de trinta anos. E também um cara de boina militar e a namorada. Carregavam um manequim vestido de soldado com uma cartolina colada no peito “Soldado Brasileiro, Intervenção Já”. Engoli em seco, e segui.

Nota nº 3

Na volta, os manifestantes já se avolumavam em torno no carro de som, que ainda não tinha sido ligado. Um rapaz escrevia na cartolina no chão. Não consegui ler a frase inteira, apenas a palavra Jesus. Uma senhora com uma camiseta contra a corrupção carregava mais um cartaz incintando o golpe. As pessoas ao redor pareciam não se importar. Grande parte usava camisa da seleção brasileira, ostentando o logotipo da CBF, uma das instituições mais corruptas que a sociedade já viu atuar.

Nota nº 4

Participo de manifestações, passeatas e marchas desde que me entendo por gente – militei no movimento estudantil e sou militante de esquerda e acredito firmemente que manifestações populares na rua são saudáveis para democracia, mesmo se, e na verdade principalmente se, estiverem num campo de pensamento diferente do meu. Isso mostra que vivemos em uma sociedade minimamente civilizada e tolerante, onde manifestações ideológicas diferentes possuem o seu espaço de disputa inviolável: a rua, o debate. Por isso me doeu ver tantas manifestações a favor de um sistema ditatorial. Uma manifestação na rua clamando pela tirania é um contrasenso histórico.

Nota nº 5

Desliguei o aplicativo de corrida e segui pra casa. Os policiais agora faziam um corredor de proteção nas calçadas da Avenida Atlântica para os manifestantes passarem. Nunca em toda minha vida vi isso acontecer em uma manifestação. Policiais relaxados, fazendo um cordão de isolamento para que as pessoas passasem. O primeiro contato que eu tive com violência policial em manifestações foi quando o menino que eu gostava foi atingido por estilhaços na Cinelândia. A quantidade de sangue era surreal. Tomei a minha primeira bomba de gás lacrimogêneo com 15 anos – eu tinha me refugiado com alguns estudantes dentro do edifício garagem no centro do Rio, ou seja, não oferecíamos perigo para ninguém. Mas vi em câmera lenta o homem uniformizado sorrir para nós e jogar a bomba por dentro das grades. Eu consegui escapar. Uma amiga e um amigo foram hospitalizados. Manifestações tão legítimas quando essa que estava acontecendo agora.

Nota nº6

Quando fui atravessar a Raul Pompéia, sai do túnel um jipe camuflado. O rapaz dirigindo também com roupa camuflada não oficial do exército. Pregado na barra de segurança, me olhando indiferente, mais um manequim vestindo roupas camufladas e a famigerada placa “Soldado Brasileiro, Intervenção Já”. Bom, o primeiro manequim então não pertencia a um indivíduo isolado. Mais manequins provavelmente estariam por aí.

Nota nº 7

Fui almoçar na casa da minha mãe. Minha tia, militante de esquerda e meu padrasto, um liberal economista defensor do livre mercado finalmente concordaram em algo: ligar a tv e acompanhar o que estava acontecendo pelo Brasil. A jornalista narrava as manifestações num clima de piquenique no parque: sem violência, muitas famílias, as pautas são o combate à corrupção, a queda do governo Dilma e a defesa da democracia. Calma, espera, para tudo. A defesa da democracia? Isso não era exatamente uma pauta do movimento que organizou as manifestações, e pelo que eu vi in loco na rua, muito pelo contrário. Uma parte substancial daquelas pessoas estava defendendo mecanismos anti democráticos, como a ditadura militar, ou simplesmente ostentando seu fascismo. Agora a tv mostrava os manifestantes de Brasília se jogando no espelho d’água do congresso, ou o famoso “laguinho”. A jornalista empolgada dizia que era apenas por diversão. Manifestantes se divertem de forma pacífica se refrescando no laguinho. Lembrei de uma amiga que tentou se refrescar nesse mesmo espelho d’água em uma marcha em 1998 e teve sua roupa rasgada pelo policial e apanhou até cair no chão. Optamos todos por desligar a tv.

Nota nº 8

Conversei com alguns familiares e conhecidos que apoiaram a marcha. Nenhum deles apoia regimes totalitários, mas estão muito insatisfeitos com a gestão de Dilma Roussef. “Eu não sou golpista, tenho direito de me manifestar, vocês querem nos pintar como viúvas da ditadura”. Concordei. É cego e burro taxar todas as pessoas que lá estavam de golpistas mal intencionados. É não ler a conjuntura de forma adequada. Continuamos a conversar e eu só pontuei que se eu estivesse alinhada politicamente à direita ou à social democracia, jamais, jamais jamais me sentiria confortável de participar de um ato público onde se pede o golpe, se ostenta sem pudor uma faixa com uma suástica ou cartazes que incitam o ódio de classe. Me sentiria conivente endossando essas posturas com a minha presença. Perguntei: vocês se sentiram confortáveis? Não obtive resposta.

Nota nº 9

Depois refletindo mais longamente, pensei que mais grave do que pessoas legitimamente insatisfeitas com o governo atual não se incomodarem de marchar ao lado de organizações anti democráticas é que organizações anti democráticas se sintam à vontade de se expôr sem constrangimento ou vergonha na frente de cidadãos de bem e das câmeras de tv na certeza da impunidade e do silêncio. Como diria Martin Luther King, “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”

Nota nº 10

A mentira da ausência de violência foi repetida mil vezes, e por mil vezes continuará a ser repetida. A violência de ter que encarar gente que acredita em um regime que mata pessoas, reprime, tortura, censura e destrói a memória de um País é extremamente dolorosa e triste. É uma porrada. A violência de ter que encarar conservadorismo, machismo, racismo, classismo, homofobia diariamente é osso duro de roer, mas estamos relativamente acostumadas. Mas quando me falam que as manifestações do dia 15 não foram violentas e me mostram criancinhas abraçando policiais militares e clima de festa, não consigo imaginar nada mais violento do que isso – festejar, festejar e festejar, dançar sobre as cinzas da história e no dia seguinte não sentir a ressaca e o gosto amargo de ter brindado e bebido nos mesmos copos que essa gente.

Nota nº 11

Fico pensando na Venezuela, que vive essa polarização há mais de quinze anos ou no bipartidarismo Norte Americano, e não nos vejo nem em uma ponta nem na outra. Nosso barquinho ainda não ancorou, não possuímos a estabilidade democrática de repúblicas mais velhas e cansadas, logo para mim existe um risco real e bem palpável de nos rendermos a uma ditadura – velada ou escancarada, como queiram. Como acredito que a história é a senhora da razão e que com ela e apenas com ela e através dela teremos uma visão menos nublada do momento político e social que estamos passando, fico aqui, aguardando e observando. E dessa vez espero ansiosamente estar errada.


Viewing all articles
Browse latest Browse all 14